Marcelo Lopes – Música erudita brasileira
Trompetista, economista e advogado, Marcelo Lopes iniciou os estudos formais de música em 1981, na Escola Municipal de Música de São Paulo, e ingressou na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – OSESP três anos depois. O profundo envolvimento com a música e a percepção de que as condições de trabalho dos profissionais desse setor eram desfavoráveis ao seu desenvolvimento, levaram Marcelo a participar da diretoria da Associação dos Profissionais da Osesp (1990-2005), cargo que deixou para assumir a direção executiva da Fundação Osesp. Em entrevista exclusiva ao Boletim da Democratização Cultural, Marcelo Lopes avalia o universo da música erudita desenvolvida no Brasil e afirma que o gênero ainda tem muito a conquistar.
Boletim da Democratização Cultural – Qual a situação da música de concerto no Brasil?
Marcelo Lopes - A música de concerto alcançou no Brasil um nível de exposição como jamais visto. A quantidade de orquestras sinfônicas em operação no País é a maior da história, sejam elas profissionais, semiprofissionais ou de estudantes. O nível de interesse pela música clássica nas camadas mais jovens, ao contrário do que supõem as análises superficiais, é maior do que há 25 anos, quando iniciei meus estudos formais de música. Escolas como o Centro Musical Tom Jobim, com mais de 2 mil alunos; a Fundação das Artes de São Caetano, com número parecido em várias manifestações artísticas; e mesmo o Projeto Guri, que enfoca a inclusão social e não o ensino técnico de música, eram impensáveis àquela época. Acho que a demanda é ascendente apontando que no futuro haverá uma maior profissionalização da música erudita. Na medida em que os governos e a população valorizam essas manifestações, engajando-se, a tendência é que o horizonte seja auspicioso.
B.D.C. – Como você percebe a questão da brasilidade na música?
M. L. - O Brasil é um país – quem sabe o único – em que as fronteiras entre a música erudita e a popular são mais fluidas. A questão rítmica no Brasil é atávica. Existe uma musicalidade latente em todas as manifestações folclóricas e aqui essas formas vão se aglutinando e se reinventando de maneira muito suave e lúdica. A mesma característica que facilita a miscigenação, faz com que novas culturas sejam incorporadas sem traumas. Essa mistura só enriquece a cultura brasileira e, de forma contínua, influencia efetivamente a música.
B.D.C. – E como se dá essa brasilidade na música erudita? Essa “mistura” citada aproxima o popular do erudito?
M. L. - A transposição desse cabedal cultural para a música erudita tem sido feita de maneira muito constante com Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, entre outros. Mas a outra via é muito clara também. Compositores populares como Tom Jobim, Egberto Gismonti e Arrigo Barnabé lançam mão de expedientes técnicos muito próprios da música formal e aproximam a música popular da erudita. Esse componente é muito presente na produção clássica brasileira. Na verdade, compositores como Mignone, Gismonti e Arrigo são até difíceis de se rotular, pois transitam muito bem em todas as esferas.
B.D.C. – Qual a importância da música para o desenvolvimento do indivíduo?
M. L. – Já é absolutamente comprovado que o estudo da música é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo, principalmente para as crianças, ampliando consideravelmente as noções de espaço e o raciocínio lógico, sem falar que a agógica da música enriquece a habilidade verbal. Pesquisas sobre a psicofísica da música mostram o quanto a imaginação é afetada pelas manifestações sonoras. Mas o efeito mais importante, no meu entendimento, é a socialização que a música propicia. Crianças que iniciam estudos coletivos de música são muito mais gregárias e adquirem um sentido muito forte de respeito ao outro e à convivência.
B.D.C. – Em que medida a experiência da música pode ser transgressiva?
M. L. – Como toda arte, a música transgride na medida em que se criam manifestações que rompam com a ordem vigente. Mas essa manifestação não rompe com a existência do contrário. A nova música geralmente alarga as possibilidades de experimentação, estendendo ao paroxismo as estruturas anteriores. A história da música é basicamente a conquista do entendimento da dissonância. Há momentos de modificação radical quando alguns modelos se esgotam, como a passagem do tonalismo para o dodecafonismo e o atonalismo, mas a música tem o condão de refletir sempre estados de ânimo da sociedade, assim ela transgride na mesma proporção que a própria sociedade. Os ciclos da história da música em certa medida coincidem com as grandes mudanças dos padrões éticos, e mesmo tecnológicos estabelecidos.
B.D.C. – Que papel o artista exerce por intermédio da música?
M. L. – O artista é a voz do seu tempo e o arauto do futuro. Ele deve portar os anseios dos homens de seu tempo, mas como gênio criativo deve imaginar os caminhos a serem trilhados e engendrar as formas desse caminhar. Músicos, principalmente compositores, e em larga medida os grandes intérpretes, são pessoas com maior sensibilidade em relação às alterações do espírito, mesmo do espírito coletivo. A música, mais do que qualquer outra manifestação artística, possibilita inúmeras leituras. A mesma obra executada no mesmo espaço e tempo é entendida diferentemente por cada um dos ouvintes. A música cristaliza nas suas estruturas o entendimento de uma época, o que cria uma aura de mistério e de magia para essa manifestação. Daí a importância da cultura erudita, pois através da grafia musical é que se levam às gerações futuras as projeções de quem viveu no passado.
B.D.C. – Qual a relação entre música e cidadania?
M. L. – Acho que são questões intrinsecamente ligadas. A liberdade de criação musical é absolutamente dependente da liberdade de expressão. Ao valorizar a expressão musical estamos garantindo a manutenção dos valores mais caros à sociedade. Houve momentos da história que a música foi até mesmo expressão da resistência a regimes de exceção, como no caso de Dimitri Schostacovich, que perseguido pelo governo bolchevique fazia da sua composição um grito pela liberdade de pensar diferente. Fazer música é buscar a convivência e entendimento do outro, e isso é tudo que se deseja de uma educação cidadã.
B.D.C. – Como democratizar o acesso à música?
M. L. – Acho que as instituições musicais devem buscar sempre o engajamento das comunidades que as cercam. A sustentabilidade de instituições culturais vem da percepção da sociedade de que suas atividades têm importância e refletem suas necessidades. Assim, orquestras, bandas e corais devem procurar manter em seus quadros indivíduos que espelhem e, de certa maneira representem, sua comunidade. Isso é mais difícil em instituições de excelência, como orquestras profissionais de alta performance. No caso da OSESP, a Sala São Paulo, no ano de 2007, abre suas portas para mais de 40 mil crianças da rede pública de ensino, dando-lhes a oportunidade, a partir de concertos didáticos, de envolvimento com esse mundo clássico. É uma forma de legitimar o investimento público na orquestra. Outra maneira fundamental é incentivar o ensino de música nas escolas e o fomento à criação de bandas e corais infantis. Essas formas musicais são muito prazerosas para as crianças e têm a vantagem de envolver as famílias e professores. Na Europa, geralmente o estudo de música se inicia em casa, mas no Brasil não temos essa tradição, logo, cabe às escolas fundamentais esse papel, claro, auxiliada pelo Estado.
B.D.C. – Mas há espaço para a música erudita no Brasil?
M. L. – Não só há espaço como tenho certeza que o Brasil terá um papel fundamental na criação musical das futuras gerações, pelas peculiaridades de nossa cultura que é permeável e criativa.
B.D.C. – Como popularizar a música erudita?
M. L. – O desafio é grande, não só no Brasil, porque a música erudita requer um nível de concentração maior e o indivíduo deve estar propenso a um estado de reflexão. Isso se aprende na escola desde cedo, nas leituras, nas atividades lúdicas. Hoje, vivemos uma realidade cibernética, onde tudo sofre de uma urgência, de um poder de diluição muito grande. Temos que repensar um pouco os princípios da educação moderna. Acho que falta algum componente mais tranqüilizador que remeta as pessoas à contemplação. É claro que o nível de exposição é importante. Concertos ao ar livre para grandes públicos, o uso de meios de comunicação de massa e até mesmo a internet são ferramentas úteis, mas a gênese do problema é trazer o indivíduo para a reflexão. E uma vez que ele entre nesse mundo, jamais se afastará dele.
B.D.C. – Como reverbera o avanço tecnológico para o universo musical?
M. L. – Há dois componentes: um positivo que é a possibilidade de maior difusão de novas formas de circulação da criação musical, principalmente para os artistas que não estão sob os auspícios da grande mídia; e o negativo diz respeito ao aumento das formas de cópia que burlam a legislação autoral, ampliando o mercado informal e causando danos ao criador. B.D.C. – Como este fenômeno pode influenciar a música erudita? M. L. – A música erudita na verdade não é o grande filão do mercado fonográfico. E, em certa medida, ela tem se beneficiado de novas formas de difusão via meios eletrônicos. Compositores como John Corigliano, que esteve recentemente no Brasil e teve suas obras executadas pela OSESP, são defensores fervorosos da distribuição livre das obras de novos compositores pela rede mundial. O pagamento seria feito quando da sua utilização comercial. Essa nova corrente tem se fortalecido nos últimos anos.
B.D.C. – Quem é o artista da nova geração da música erudita? E o que o difere de seus antecessores?
M. L. – Acho que no Brasil o perfil se alterou muito. Antigamente nas orquestras, o nível intelectual dos músicos era muito baixo. Hoje, raros são os que não têm cursos de pós-graduação. Ou seja, pessoas que fazem da música uma forma privilegiada de expressão de sua crença na criação artística; indivíduos cultos e bem preparados. É claro que essa mudança de perfil trouxe consigo o efeito de elevar as exigências técnicas, mas o movimento é positivo. Como são mais antenados, tornam-se também mais flexíveis e abertos a vários tipos de música. Acho que temos um terreno fértil para novos compositores, grupos alternativos e autônomos.
B.D.C. – Como você vê a produção erudita atual? Que papel ela representa no cenário musical hoje?
M. L. – Acho que vivemos um momento de síntese. Passamos no século 20 por vários movimentos de desestruturação, fragmentação e experimentalismos. Parece que compositores atuais como Gorecki, Arvo Part, Joan Tower e John Corigliano voltam a estruturar suas composições e buscar um apanhado do que sobrou de positivo de todas as turbulências recentes. Jovens compositores brasileiros como André Mehmari e Liduino Pitombeira seguem essa mesma tendência.
B.D.C. – Como é percebida, no Brasil e no exterior, a música de concerto nacional?
M. L. – Tivemos grandes compositores brasileiros desde o século 19. Há muitas obras por serem descobertas. Acho que ainda falta uma difusão maior da música brasileira – estou falando da música de concerto. Precisamos de gravações de qualidade, de revisar as partituras, editar o que ainda está manuscrito e disponibilizar para o mercado internacional. A OSESP vem gravando compositores brasileiros e suas gravações têm sido premiadas pelo mundo. Além disso, temos uma editora, a Criadores do Brasil, que oferece as obras para venda ou locação. Vejo que a procura pelas obras de Camargo Guarnieri aumentou após o lançamento mundial de suas obras pelo selo sueco BIS, acionado pela OSESP para gravar os compositores brasileiros. O mesmo acontece com as obras de Villa-Lobos e Francisco Mignone. Na verdade, não vejo grande assimetria de percepção, pois infelizmente essa música ainda está por ser descoberta aqui mesmo no Brasil.
B.D.C. – Qual o futuro da música erudita brasileira?
M. L. – Sou otimista. Acho que a música erudita brasileira deve ser descoberta e difundida. Há uma carência de novas manifestações e o Brasil tem um estoque enorme, recôndito. Existe um interesse grande no mundo pela música brasileira do passado e olhares curiosos sobre a produção atual que é riquíssima. Faltam instituições fortes que sobrevivam às vagas políticas para fazer da música erudita um pilar da cultura nacional, mas mesmo nesse aspecto temos caminhado e a OSESP é um firme exemplo de que há possibilidade real de sucesso.